quarta-feira, 8 de julho de 2020

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Mito e psicanálise

Coleção PASSO-A-PASSO
CIÊNCIAS SOCIAIS PASSO-A-PASSO Direção: Celso Castro
FILOSOFIA PASSO-A-PASSO Direção: Denis L. Rosenfield
PSICANÁLISE PASSO-A-PASSO Direção: Marco Antonio Coutinho Jorge
Ver lista de títulos no final do volume
Ana Vicentini de Azevedo
Mito e psicanálise
Rio de Janeiro
Copyright © 2004, Ana Maria Vicentini Ferreira de Azevedo Copyright desta edição © 2004: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800 e-mail: jze@zahar.com.br site: www.zahar.com.br Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)
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Capa: Sérgio Campante
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
A986m
Azevedo, Ana Vicentini de  Mito e psicanálise / Ana Vicentini de Azevedo. — Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2004                    (Passo-a-passo ; 36)
  Inclui bibliografia  ISBN 85-7110-775-0
  1. Mito — Aspectos psicológicos. 2. Psicanálise. 3. Psicanálise e cultura. I. Título. II. Série.
CDD 150.195 04-0608 CDU 159.964.2
Sumário
Introdução 7
A psicanálise no mito 9
O mito na psicanálise 36
Conclusão 64
Referências e fontes 71
Leituras recomendadas 74
Sobre a autora 76
... O mecanismo dos mitos — sua formulação sensificadora e concretizante — de malhas para captar o incognoscível...        João Guimarães Rosa (“Aletria e Hermenêutica”)
... O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? ... Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa...        Walter Benjamin (“Sobre o conceito da história”)
Introdução
Um importante jornal de Brasília publicou, há algum tempo, matéria tratando de responder a uma série de dúvidas que comumente temos sobre saúde, alimentação e esporte (por exemplo, se o ovo aumenta o colesterol; se a margarina é melhor que a manteiga, ou se pintas e sinais podem virar câncer). As respostas, todas bastante assertivas e conclusivas, vinham divididas sob duas categorias, ou melhor, dois veredictos: mito ou verdade. Assim, as perguntas sobre o ovo e a margarina foram classificadas de “mito”, e a questão sobre pintas e sinais, de “verdade”. Esse fato cotidiano e simples é ilustrativo de uma questão que aqui nos interessa de perto: o que se entende por mito? Se tomarmos essa matéria jornalística como parâmetro, vemos que para o jornal, ou pelo menos para o autor da matéria, opõe-se à verdade, à certeza, à exatidão científica, sendo, portanto, sinônimo de falso, de crença ou superstição, de engano — em suma, de algo que deve ser descartado em prol da razão, de um conhecimento veraz e profundo. Os dois eixos que orientam as respostas podem ser caracterizados, sucintamente, da seguinte forma: de um lado, verdade, razão, conhecimento; de outro, mito, falsidade, fantasia, engano.
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A oposição do mito à verdade, ao conhecimento científico, à episteme, não é privilégio, ou equívoco, somente desse jornal. É comum ouvirmos a expressão: “Ah, isso é um mito”, quando o ouvinte quer pôr em questão a autenticidade de um fato que lhe é relatado. Essa oposição, seja na mídia ou no senso comum, tampouco é característica de nossos dias ou de nossa cultura. No filosófico século IV a.C., na Grécia, temos Platão reprovando as fábulas (mythoi, em grego), os relatos fantasiosos de Homero, de Hesíodo e de outros poetas na defesa do discurso racional, filosófico e, portanto, mais verdadeiro que estava em construção. Nessa construção, o mythos dos poetas é investido de características como falso (psêudos), ruim ou nocivo (kakós), em oposição à desejável verdade (alethê). Em face desses atributos e, justamente, com o intuito de corrigi-los, se erguerá o discurso filosófico. Diferentemente dessa oposição dicotômica, presente tanto na filosofia clássica quanto no senso comum de hoje, a psicanálise, desde seus primórdios, sempre trabalhou no sentido de pôr tal oposição em questão. Já na obra fundante do método psicanalítico, A interpretação dos sonhos (1900), o mito figura como uma fonte ímpar de reflexão e inspiração para Sigmund Freud elaborar suas teorias acerca do funcionamento psíquico. O que há nesse tipo de linguagem que chamamos “mito”, que a torna objeto de polêmica, por exemplo, na República de Platão e, por outro lado, é objeto de fascínio para a psicanálise? Neste trabalho vamos procurar percorrer algumas vias que possibilitem ao leitor elaborar suas próprias respostas
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a essa indagação. Para tanto, dividimos esse percurso em duas seções. A primeira tratará de explorar a presença da psicanálise, ou da lógica psicanalítica, em algumas instâncias do discurso mítico. Tomaremos o mito aqui como algo maior que tece, avant la lettre, algumas noções que mais tarde serão elaboradas pela psicanálise. Na segunda seção, faremos o caminho inverso — vamos examinar o mito na psicanálise, como esta tem se alimentado dele (mas não só) na construção de suas teorizações. Nessa parte o universo maior será o psicanalítico, em meio ao qual encontram-se conceitos, teorizações, além do próprio mito. Com esse procedimento busca-se flexibilizar a análise da relação mito e psicanálise, evitando instrumentalizar um ou outro discurso e instituindo um movimento que ponha em questão as fronteiras do fora e do dentro que delineiam cada um desses dois discursos. Nesse exercício de contaminação mútua, visamos matizar uma hierarquização, seja da psicanálise, seja do mito (onde um é sempre maior que o outro), na constituição de uma relação que vá além de uma relação de especularidade e que preserve as especificidades de cada instância discursiva, no exato momento em que se estabelecem pontos de interseção entre elas.
A psicanálise no mito
Uma miríade de possibilidades se abre quando tentamos relacionar mito e psicanálise, quando construímos uma relação entre esses dois campos. A construção, ou relação,
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que vamos estabelecer aqui será norteada, em um primeiro momento, não por um ou outro campo, mas fundamentalmente pela conjunção “e” que liga os dois. Como a gramática nos ensina, e o próprio nome já indica, a conjunção traz junto, conjuga, põe em relação termos ou orações. No caso do “e”, sua qualidade aditiva é facilmente perceptível e, ainda segundo as leis da língua, essa adição dá-se entre termos ou orações de igual função, como, por exemplo, “abra a porta e entre”. Mas será que, fora desse domínio, pode-se sustentar essa simetria ou paridade funcional que apregoa a gramática? Supondo que o período acima houvesse sido retirado de uma narrativa da qual tivéssemos indicações prévias, por exemplo, de que a fechadura estava com defeito, ou de que a personagem-sujeito da ação tivesse problemas impeditivos em entrar nesse espaço, dificilmente situaríamos ambos os verbos em um mesmo plano de igualdade. De maneira análoga, podemos pôr em questão — ou pelo menos em movimento — a conjunção aditiva “e” que articula mito e psicanálise, a qual, em muitas relações dessa ordem, camufla uma posição privilegiada ou hierárquica de um termo sobre o outro. Como a psicanálise tem nos ensinado ao longo de mais de um século, dificilmente as relações (sejam elas de que natureza for) se dão em bases paritárias, ou de igualdade. É, pois, no sentido de explicitar essa dissimetria e de minimizar inevitáveis hegemonias entre os dois campos que estarão aqui dialogando que vamos trabalhar sob a orientação do quiasma. Conforme a retórica, o quiasma é uma
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figura de linguagem que se marca pela inversão, pela troca de lugares de termos, tal como: “a bola do jogo” e “o jogo da bola”. Vamos aqui procurar manter a bola sempre em jogo em atenção à lógica privilegiada tanto pelo mito quanto pela psicanálise, qual seja, a do movimento plural da metamorfose e a do desejo. Assim sendo, examinaremos, nessa primeira parte, a psicanálise no mito e, na segunda, o mito na psicanálise.
As (in)consistências do mito. Ouve-se com freqüência, particularmente daqueles que estão iniciando sua trajetória em psicanálise, a interrogação acerca das razões que teriam levado Freud a se interessar tanto pelos mitos, especialmente os de origem grega. Em vez de especular sobre as motivações de Freud, o que é uma via pouco frutífera em minha opinião especialmente do ponto de vista psicanalítico, sugiro outra troca de posições: tirar Freud de foco e nos interrogarmos sobre esse tipo de linguagem, chamado mito, que tanto atraiu a atenção do criador da psicanálise. Essa pode ser uma pergunta-chave para entrarmos nesse labirinto que é o campo do mito a fim de refletir sobre (e montar) sua relação com a psicanálise. Comumente associamos mito a estórias fabulosas, a narrativas fantásticas, muitas vezes absurdas, incoerentes e contraditórias, impossíveis de terem lugar na “vida real”. Essa noção comum encontra eco entre as muitas tendências dos estudos sobre mitologia que postulam ser o mito uma estória que se mantém inalterada, independentemente de sua ordenação verbal ou estruturação discursiva. Em outras
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palavras, para algumas vertentes interpretativas, o mito restringe-se ao domínio do significado, que permanece inalterável, fixo e independente do significante. Medusa vai sempre significar isso ou aquilo, seja ela representada em um vaso ou em um poema de Hesíodo. A fim de matizar essa primazia do significado, façamos mais outra inversão — e são de versões que tratamos aqui —, pondo em relevo o próprio significante. Em sua Poética, Aristóteles nos faz ver a ambigüidade em que está imerso o significante mythos na língua grega. Ao mesmo tempo em que o termo se refere a uma fabulação, a um relato, a uma estória, ele também concerne ao arranjo desses fatos fabulosos. Ou seja, o mito, segundo esse filósofo, não é algo somente da ordem do significado, do conteúdo, mas igualmente diz respeito a como esse significado se constrói, a uma lógica que preside à articulação significante. Nesse sentido, mythos diz respeito tanto a “fábulas fabulosas”, mais ou menos carregadas de sentido, quanto a um tipo de linguagem, a uma razão discursiva, ou logos — como, aliás, têm sustentado muitos especialistas, dentre os quais Paul Ricoeur, Jean-Pierre Vernant e Marcel Detienne. Sob essa ótica, podemos desfazer a antinomia “mythos x logos”, ou “fantasia (aí compreendidas a ficção e, até mesmo, a mentira) x razão”, e olharmos o mito como uma “mito-lógica”, na expressão de Ricoeur, isto é, como um discurso cujo sentido só poderá advir do exame desse logos, da lógica de sua linguagem. Como vimos, o mito é um termo múltiplo, ambíguo, desde sua própria origem na língua grega, prestando-se a
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designar composições de vários gêneros literários (épico, lírico e dramático), relatos históricos, lendas da tradição oral, bem como a sua própria ordenação, isto é, os tipos de relação que se estabelecem nesses relatos e que os constituem. Tal ambigüidade etimológica espelha a ambigüidade mesma de sentido presente nos relatos míticos: neles, o significado jamais pode ser tomado de maneira unívoca e fixa. Um mesmo elemento ou significante pode estar referido, por exemplo, à vida ou à morte, ou ainda à ressurreição. Isso vale também para a própria definição de mito: por mais rigorosa e elaborada que seja, ela não terá um alcance universalmente válido, genericamente aplicável a toda gama de arranjos discursivos que temos chamado de mito. Essas características nos defrontam com dois tipos de dificuldade: por um lado, a variedade daquilo que chamamos de discurso mítico e, por outro, a variedade de discursos sobre o mito que temos desde os primórdios da história. Tais dificuldades acabam por intervir no que designamos como mito. Por essas características, temos que trabalhar com esses dois planos discursivos: o do próprio relato e o da história de suas leituras e interpretações. Estar alerta a essas dificuldades por um lado, torna ainda maior o desafio de deslindar mitos. Por outro, constitui um indício firme de que não devemos tomá-los como um arquétipo. Dito de outra forma, não devemos tomá-los como um modelo fixo e explicativo do sentido originário, último e definitivo, de questões imersas na história e na cultura, de questões que surgem na e da linguagem e perfazem o humano em suas vacilantes significações.
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Mas daí surge uma interrogação: se há no mito uma inscrição histórica tão marcante, o que tem levado inúmeros pensadores, fora do âmbito dos estudos helenísticos, a se debruçar sobre o legado mítico da Grécia Antiga? Como pôde Freud, por exemplo, extrair, desse corpus mítico, bases para a fundação da psicanálise nos primórdios do século XX, em plena modernidade? Esse é um ponto polêmico na literatura sobre mito e psicanálise e objeto de crítica a esta última por parte de especialistas em estudos clássicos, antropologia, história e crítica literária. No centro desse debate está a tensão entre o geral e o particular, entre o coletivo e o individual, entre o universalmente válido e a particularidade histórica e cultural. Em vez de insistir na dicotomia “universal x particular”, vamos, na esteira da Poética de Aristóteles, situar o mito na interseção entre o universal e o singular, entre a estrutura e sua atualização. Temos em mente, também, o importante trabalho do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que, ciente da impossibilidade de se circunscrever o mito a um único plano discursivo, propõe que o pensemos tal como a lingüística pensa a língua. De acordo com esses estudos, especialmente os de Ferdinand de Saussure, a linguagem estruturase em torno de dois eixos: o da língua, que comporta a dimensão do que é invariável e, portanto, estrutural; e o da fala, domínio da contingência, da atualização pulsante e singular da língua. Além de permitir superar a dicotomia “universal x particular” e de situar o mito na confluência do contínuo e do descontínuo, o trabalho seminal de Lévi-Strauss põe em relevo um outro aspecto da linguagem mítica que nos inte
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ressa de perto: a repetição. Ao sublinhar o caráter contingencial do mito, o antropólogo acentua também a similaridade das estórias ao redor do mundo e em tempos variados da história — há algo que se repete, que é similarmente insistente na linguagem mítica, em meio a suas particularidades históricas ou culturais. Tal repetição tem por efeito expor, desvelar um ponto nodal dessa linguagem: a atenção a contradições e à sua superação. Sob essa ótica, vemos que não é à toa, então, que sejam recorrentes nos mitos questões como vida e morte; o mesmo e o outro; a diferença sexual; o perene e o transitório; e assim por diante.
O magnetismo do mito. Tanto o mito como linguagem quanto a questão da repetição de contradições constituem pontos notáveis da atração que o discurso mítico tem exercido sobre a psicanálise. O inconsciente, a espinha dorsal dessa descoberta freudiana chamada psicanálise, também estrutura-se como uma linguagem, conforme insistiu Jacques Lacan, a partir de Freud. Uma linguagem que, sobretudo, se funda no paradoxo, na coabitação de opostos e na repetição, na tendência a retornar sempre ao mesmo ponto; em geral, ao ponto de encontro com uma satisfação originária e absoluta e, portanto, mortífera. Por essas breves indicações, podemos já perceber que, tanto na esfera do mito quanto na do inconsciente, estamos muito distantes de alguns atributos comumente a eles associados: as profundezas obscuras, o primitivo, “o lugar das divindades da noite”, como ironizou Lacan. Somos, sim, confrontados e, às vezes, afrontados por questões que gravitam em torno das origens, do sujeito, do mundo, do
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sujeito no mundo, da (sua) história. Disso se ocupam os mitos e a psicanálise enquanto prática clínica. É significativo lembrar, nesse sentido, que clínica vem do verbo grego klíno, deitar, reclinar — posição privilegiada para o nascimento, a doença, o sexo, a morte, o sonho e o devaneio, experiências que encontram no divã psicanalítico seu signo emblemático. Deitar-se para relembrar, para rememorar o que não pode ser esquecido. Mais uma vez, o antigo grego traz novas luzes, olhares: ao que não se esquece, dá-se o nome de alétheia, também traduzido por “verdade”. É dessa verdade que se ocupam o mito e a psicanálise. Retendo nossa atenção ao primeiro, vamos seguir a trilha que esboçamos acima (a de que o mito é uma linguagem) e prestar atenção à língua que constrói esse corpus complexo que denominamos mitologia grega. Antes disso, uma ressalva de percurso, de método: método, etimologicamente, diz respeito a caminho. Estamos aqui circunscrevendo ainda mais nosso foco de discussão: na relação mito e psicanálise, estamos privilegiando a mitologia grega, ainda que esta seja, como sustentam vários especialistas, mais pobre, se comparada, por exemplo, a tradições míticas da Ásia, da África e das Américas. Ao contrário destas, da Grécia temos apenas parcos fragmentos e comentários tardios, o que sempre haverá de nos deixar, enquanto leitores e intérpretes, em posição tateante. A eleição da Grécia recai, primeiramente, por sua força de atração sobre Freud em sua construção da psicanálise (alguns dos elementos desse campo de força é o que tratamos aqui de apontar). Em segundo lugar, e também em
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consonância com estudiosos de mitologia comparada, a tradição mítica grega situa-se em um nível intermediário entre a filosofia e a religião. Pela presença e participação destes dois últimos discursos na fundação e robustecimento da psicanálise, podemos ver nesse nível intermediário da mitologia grega mais um outro pólo de atração não só para Freud mas também para a tradição humanista no Ocidente, de maneira geral.
Pares antitéticos. Como vimos, a partir de Lévi-Strauss, o objetivo primordial do mito, seja ele grego ou não, é dar conta de contradições, ou fornecer um modelo lógico para superá-las. Ao sublinharmos acima a questão da verdade, como central à lógica mítica grega e à psicanálise, trouxemos, en passant, sua antítese: o esquecimento — Léthe, em grego. Essa oposição indica, em primeiro lugar, o fato de que a questão da verdade é, antes de tudo, uma questão de palavra, de linguagem. Vejamos. Em uma das principais fontes da mitologia grega, o poema Teogonia, de Hesíodo (c. séc. VIII a.C.),  no catálogo dos Filhos da Noite, temos Léthe personificada como filha de Discórdia (Éris). “Éris hedionda pariu Fadiga cheia de dor / Olvido (Léthe), Fome e Dores cheias de lágrimas”, relatam os versos 226-27, na tradução de Jaa Torrano. A personificação do esquecimento traz à luz um importante mecanismo da linguagem mítica — a coexistência de pelo menos dois planos: um referencial, denotativo e abstrato, onde léthe é esquecimento, olvido; e outro metafórico, onde vícios e virtudes humanas tornam-se concretos, encarna
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dos, têm vida própria e, assim sendo, são obras dos homens. Note-se, a esse respeito, que Discórdia é a única, dentre os filhos da noite, a se reproduzir, a engendrar outras mazelas da vida humana. Essa justaposição entre o sensificador e o concretizante a que alude a epígrafe de Guimarães Rosa no início, essa ambígua tensão entre a abstração e a concretude é produtiva, na medida em que permite ao discurso mitopoético inscrever a noção de esquecimento no campo semântico da noite, da morte, das trevas, do silêncio, da dor e do sofrimento. Do outro lado temos Alétheia, literalmente, o não-esquecimento, ou seja, uma força positiva que se afirma na e pela negatividade, em tensão com uma força negativa, o esquecimento e sua linhagem, que se afirma positivamente. Ao invés de uma oposição excludente, que vigoraria em uma lógica clássico-racional, temos a constituição de um par dialético, onde um termo está implícito no outro. Tal ambigüidade perfaz, por excelência, a lógica da linguagem mítica, que se caracteriza por transbordar o princípio da não-contradição (princípio este que é marca do discurso racionalfilosófico). É nessa fonte mito-lógica onde a psicanálise irá encontrar sua maior báscula, residindo aí a sustentação mais notável para a afirmativa de Lévi-Strauss de que há já muita psicanálise no mito. Dito de outra forma, o mito põe na cena da palavra, da linguagem, muito do que a psicanálise vai mais tarde explicitar, a partir da lógica do inconsciente, tanto em sua teoria quanto em sua prática clínica. Ao longo de toda a sua obra, Freud tratou de firmar e afirmar essa filiação da psicanálise direta ou indiretamente
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— e filiação, isto é, linhagem, história, é fundamental a ela. Em um pequeno ensaio de 1910, “O sentido antitético das palavras primitivas”, encontramos, de forma concisa e cuidadosa, a questão da lógica dos contrários. A “via régia do inconsciente”, qual seja, a linguagem do sonho, caracterizase por ignorar as oposições, por empreender uma combinação dos contrários em torno de um único elemento (hoje diríamos significante, com Lacan) ou por representá-los como uma mesma coisa. A fim de comprovar essa idéia, já amplamente trabalhada dez anos antes na Interpretação dos sonhos, Freud busca suporte no trabalho do filólogo alemão Karl Abel para mostrar como o trabalho do sonho estrutura-se de maneira idêntica às linguagens mais arcaicas. Em egípcio antigo, mostra Abel, mais do que a coalescência de sentidos antitéticos em um mesmo vocábulo, tem-se palavras compostas por dois termos antitéticos que comportam somente um dos sentidos deles. Algumas das descobertas de Abel foram questionadas por filólogos posteriores, conforme nos apontam os editores da Standard Edition das obras de Freud. No entanto, é importante sublinhar que o interesse do psicanalista não recaía sobre os dados filológicos, mas sobre a estrutura da linguagem que há anos ele vinha deslindando em suas elaborações sobre o funcionamento do aparelho psíquico, notadamente do inconsciente. (Note-se a esse respeito que Freud não teve acesso aos revolucionários estudos lingüísticos de Saussure.) Foi devida a essa solidariedade estrutural, antecipada por Freud, que Lacan pôde afirmar que “o
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inconsciente estrutura-se como uma linguagem” e que o próprio Freud tenha insistido na importância de os analistas conhecerem o desenvolvimento da linguagem, a etimologia, a fim de poderem entender e trabalhar na tradução da “linguagem do sonho”. O “par antitético” Verdade-Esquecimento mostra agudamente, avant la lettre, esse princípio basal da psicanálise: a dualidade como estruturante da vida psíquica. Uma dualidade em especial põe-se em relevo na metapsicologia freudiana, onde, mais uma vez, temos a presença bussolar da mitologia grega: Eros-Tânatos (pulsão de vida-pulsão de morte). Antes de visitarmos essas duas divindades e, mais ainda, muito antes de tratá-las como pulsão, fiquemos um pouco mais com Verdade.
“A verdade tem estrutura de ficção.” Em uma leitura ligeira e comum, o título acima, de Lacan, poderia ser visto como um caso exemplar de opostos: “verdadeiro x falso”. Esse par difunde-se de tal forma na tradição ocidental de pensamento, que o fundador da moderna lógica matemática, o alemão Gottlob Frege (1848-1925), avança a idéia de que todas as proposições se subdividem em duas categorias: as proposições que têm como referência o verdadeiro e as que têm como referência o falso. Em se tratando de Verdade, conformada pelo pensamento mítico grego, e esposada pela psicanálise, estamos muito distantes de Frege. Mais uma vez, a Teogonia, de Hesíodo, nos faz caminho. A primeira palavra do poema é já um sinal de alerta: Mousáon, das Musas, ou através das
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Musas. São essas divindades múltiplas e poderosas a comparecer, de maneira invocativa, no primeiro verso da Odisséia, de Homero: “Conte-me, ó Musa, sobre o homem de muitos ardis [polytropon].” O pedido é reiterado logo adiante, no décimo verso: “Destas coisas, ó deusa, filha de Zeus, conte-nos, principiando por onde quiserdes.” A dupla invocação de Homero à filha de Zeus é indicativa do status da Musa no idioma mito-poético. Além da olímpica linhagem, cabe à Musa a tarefa de falar/cantar através do poeta, de ordenar o canto. Ou seja, é prerrogativa dela decidir o que dizer e como dizê-lo. Conforme vimos acima, essa é a noção de mythos cunhada por Aristóteles. Mito e Musas entrelaçam-se na atividade poética, sendo essas as tecelãs daquele. Hesíodo é ainda mais eloqüente no que concerne às Musas, como, por exemplo, nos versos 22-28 da Teogonia:
Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto Quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino. Esta palavra [mython] primeiro disseram-me as deusas Musas Olimpíades, virgens de Zeus porta-égide: “Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só, sabemos muitas mentiras [pseúda] dizer                símeis [homoîa] aos fatos e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações [alethéa]...”
O primeiro ponto a ser destacado diz respeito à circunscrição da tarefa do poeta à esfera do mythos, que ganha, na tradução de Jaa Torrano, mais uma importante dimen
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são: a da palavra. É nela que se situa o falso, o enganoso e o verdadeiro. Será que estamos, então, solidários às duas categorias que Frege identifica na classificação das proposições? A questão é de intricada interpretação, conforme apontam comentadores da Teogonia, e nos permite uma via alternativa, distante da oposição binária. Na qualidade de gestoras da palavra, do canto poético, as Musas podem produzir palavras que, enganosamente se assemelham aos fatos e que estão em conformidade (homoîa) com eles, como também os conformam. Pois bem, é justamente nessa “mentira”, que busca se assemelhar aos fatos — e assim assimilá-los —, onde reside o fulcro da ficção, do encanto poético. As Musas parecem aqui antecipar uma compreensão aguda da ficção como uma mentira que diz a verdade, conforme também indica o aforismo de Lacan sobre a verdade como ficção. Que verdade é essa que as Musas orgulhosamente afirmam dizer? De novo, sua linhagem é reveladora da natureza de verdade. As Musas são filhas de Zeus, com Mnemosyne (Memória), ou seja, elas são a combinação do esplendor fulgurante de Zeus com a potente presença da negação do esquecimento, a Memória. É por essa filiação, por essa gênese, que as Musas têm por prerrogativa dizer a verdade (“alethéa gerysasthai”), “dar a ouvir revelações”, na opção do tradutor brasileiro. Contrariamente a Esquecimento, Verdade inscreve-se assim no campo da luz, da palavra, da presença, da revelação de algo que poderia ser silenciado, esquecido, censurado, como mostra Marcel Detienne em seu instigante Mestres da
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verdade na Grécia arcaica. Nesse início da Teogonia, a interpelação que as Musas fazem a Hesíodo situa a palavra da qual o poeta é porta-voz, em uma “dialética de complementaridade antagônica” (na expressão de Jean-Pierre Vernant), a qual funda o ser — no horizonte do não-ser, do silêncio, do esquecimento —, como ser de (e determinado pela) palavra. Em face desse poder da palavra mito-poética, não é de se estranhar que, na Grécia arcaica, essa palavra cantada tenha tido o poder de restaurar a saúde dos enfermos, na medida em que os punha em contato com as forças primevas e pulsantes da vida que estariam adormecidas ou esquecidas, arrancando-os da obscuridade mortífera do silêncio para inseri-los em linhagens, nos campos semânticos do que não pode ser esquecido, censurado, sob pena de engendrar — tal como o fez Discórdia, mãe de Esquecimento — dores, sofrimento, doença, lágrimas. É em profunda solidariedade com esse poder da palavra que a psicanálise se funda como a talking cure, a cura pela palavra, como agudamente batizou-a uma paciente de Breuer, Anna O., cujo tratamento é comentado por Freud em vários de seus escritos. Tal como o poeta arcaico, o analisante dedica-se ao relato (uma das traduções possíveis de mythos). Muitas vezes pleno de ficções, de fantasia, de psêudes, o relato o leva a trazer à luz, a ver, a re-velar, sob a égide de Memória, ou do trabalho da rememoração, dimensões de sua verdade, de Verdade. Encontramos um outro desdobramento possível deste trabalho do analisante, à luz da mito-poética Verdade, em
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um comentário de Lévi-Strauss, que diz que “os mitos despertam no homem pensamentos que lhe são desconhecidos”. Se atentarmos para o fato de que só se pode despertar o que está adormecido, vemos surgir aí, associativamente, o campo do esquecimento, do silêncio. Assim sendo, esse “desconhecido” de que fala Lévi-Strauss pode ser visto como algo que já se conheceu, que já se inscreveu, e que está adormecido, esquecido no domínio do Olvido, da negatividade de Esquecimento. É essa dialética de um saber que não se sabe, característica do que chamamos de inconsciente, que pode vir a ocupar o lugar da Verdade, na ótica do discurso psicanalítico, especialmente em sua inflexão lacaniana. Vemos, então, como a psicanálise sublinha e ecoa, bem mais tardiamente, que Memória e Verdade são inextricáveis, como, aliás, observou Detienne a respeito do idioma mítico grego, em conformidade aos mais rigorosos parâmetros dos estudos helenísticos.
Traços de Memória. A indelével presença de Memória, no mito e na análise, dá-se em uma dimensão que novamente atesta a íntima convivência dessa descoberta freudiana com a tradição mito-poética, qual seja, a dimensão da oralidade, fundamental à tradição grega, especialmente entre os séculos XII e IX antes da era cristã. Para uma sociedade sem escrita, esse trabalho de preservação do legado, da memória do que já foi inscrito e não pode ser apagado adquire importância vital. Não é por acaso que ainda podemos ouvir ecos dessa tradição e de sua importância, no filosófico
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século IV a.C., no Fedro, de Platão, onde Sócrates censura a escrita como nociva à memória. O relato, a palavra mito-poética, somente pode dar-se em presença no aqui e agora. Se, por um lado, Memória é pura presença, e exige a presença de alguém que fale/cante e de alguém que ouça, por outro, seu olhar se volta para o passado, para o que foi, na visada do que será. “Pelas Musas comecemos, elas a Zeus pai / hineando alegram o grande espírito no Olimpo / dizendo o presente, o futuro e o passado...”, dizem os versos 36-38 da Teogonia. Temos aqui um alargamento do espectro do cantar das Musas e, em última instância, da Memória. Além de falar de presente e passado, elas também têm acesso ao invisível, ao devir, atributo marcante de outro desdobramento importante de Verdade, de revelação: a vidência. A palavra mitopoética constrói-se, então, no diapasão “do ser e do tempo”, ou melhor, do ser no tempo, do que é, do que foi e do vir-a-ser. Na tensão entre o silêncio da morte, do esquecimento e a fulgurante presença da revelação, orienta-se a palavra das Musas em torno do ser e de seus contornos. Na visão de Hesíodo, além de reiterar a confluência da atividade poética — orientada para o passado — com a do adivinho, cujo olhar revelador lança-se para o futuro, importa-nos aqui pôr em relevo a imbricação dos três tempos promovida pelas filhas de Memória. Sob sua égide, o passado pode transitar pelo presente, tornar-se presente; o futuro pode atualizar-se e reconfigurar o passado; e o presente projeta-se tanto no incognoscível devir quanto no passado cambiante.
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Como igualmente ensina Hesíodo, Memória é também filha de Uranos (Céu), e Ghéia (Terra) e, portanto, irmã de Crónos, aquele que, pela castração do pai, separa o Céu e a Terra. Mais tardiamente, Crónos é confundido com Chrónos (Tempo). É dessa confusão que Memória se separa, se diferencia. Aliás, como Freud nos ajuda a ver, a memória é algo que se dá diferencialmente. É por esse traço diferencial em relação ao tempo, à cronologia, que Memória pode engendrar Musas, cantos, encantos que põem o tempo em movimento, descongelam o passado e fazem brotar o futuro, ligando o que aparece e o que desaparece, o que é e não-é. Tanto a criação poética quanto o fantasiar são regidos por esses três tempos, conforme nos ensinou longinquamente Hesíodo e, posteriormente, Freud, em seu ensaio de 1908: “O poeta e o fantasiar” (traduzido de um modo problemático para o português como “Escritores criativos e devaneio”). Ao sublinhar a importância da relação da fantasia com o tempo, Freud situa-a como que pairando sobre os três tempos que existem nos processos ideacionais. O fio do desejo — e sua satisfação — tece esses tempos em três tipos de produção psíquica: a fantasia, a escrita criativa e o sonho, todos alimentados por experiências pregressas, pelo que foi satisfatoriamente vivido, por exemplo, nos jogos infantis. Temos aqui um importante aspecto da fantasia e da poesia sob a ótica mítica de Memória: o trabalho de criação é, ao mesmo tempo, um trabalho de re-criação. É nesse sentido, então, que podemos fazer confluir as figuras do cantor arcaico e do analisante moderno, ambos seguidores e praticantes dos ritos de Memória como encarnação figu
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rada do que se inscreveu, sem escrita. O discurso mito-poético e a fala, o mythos, do analisante são criações em que se recriam as relações fundamentais, e por isso indeléveis, do humano; em suma, são criações que buscam religar o homem a forças originais, vitais, a Eros.
“Eros, doceamargo”. A complexidade de Eros revela-se de forma pungente quando atentamos para o fato de que ele atravessa vários períodos da produção literária grega, sendo objeto de atenção de diversos tipos de relatos míticos. Eros figura desde a poesia arcaica de Hesíodo; passando pelos poetas líricos, de maneira notável por Safo de Lesbos e Alceu de Mitilene; como também pela poesia trágica, com Sófocles; até chegar aos discursos filosóficos de Platão, onde no Simpósio, ou Banquete, o deus é por excelência o objeto do festivo debate de idéias. Naquela que tem sido aqui nossa principal fonte de referência, a Teogonia, essa força primeva que é Eros figura logo no início dessa cosmogonia ou desse relato de origem do mundo. Assim nos conta Hesíodo, nos versos 116-122, na tradução de Joaquim Brasil Fontes:
Primeiro que tudo surgiu o Caos, e depois Ghéia de amplo seio, para sempre firme alicerce de todas as coisas, e o brumoso Tártaro num recesso de terra longe dos caminhos, e Eros, o mais belo de todos entre os deuses imortais, que amolece os membros e, no peito de todos os deuses e de todos os homens, domina o espírito e a vontade ponderada.
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Como o quarto na linhagem de deuses primordiais, e tal qual seus antecessores Caos, Terra (Ghéia) e Tártaro, Eros não é gerado por dois seres sexuados, como o serão as demais divindades, especialmente as olímpicas. Eros surge do vazio, de Caos, ou de sua própria potência geradora. Tais divindades geram a partir de si próprias, dando-se elas mesmas à luz. Dessa reflexividade resulta que do um geramse dois, onde o um é marca do Todo, de plenitude, de abundância, da ausência de falta e privações, marca que se afasta do universo do humano, mas que, ao mesmo tempo, marca uma de suas maiores aspirações ou, em um vocabulário psicanalítico, uma de suas pulsões. Esse Eros primevo em muito difere de outro, mais tardio e mais comumente conhecido como Eros, filho de Afrodite, e que, portanto, vem a um mundo, a um cosmos — lembrando que este termo, em grego, implica ordenação — que já se afastou do Caos, do vazio do primeiro Eros. A origem do segundo Eros dá notícia de divisões, de perdas, de relações que passam pela diferença sexual. Sua mãe, Afrodite (Aphrodíte), nasce dos testículos do pai, Uranos, atirados ao mar pelo filho Crónos (áphros é tanto espuma do mar quanto esperma). Filha da divisão, da castração, sua missão será atrair, aproximar, unir seres que estão igualmente marcados pela divisão, para que dois possam gerar um, que é três. Podemos ver, nessa dualidade de Eros, traços de algo que será muito caro a Freud em sua construção da psicanálise: a dualidade pulsional. Dada a complexidade da teoria das pulsões, destacaremos aqui apenas alguns aspectos da relação dessa teorização que identificamos no pensamento
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mítico grego. O primeiro deles nos é dado pelo próprio Freud, na conferência XXXII das Novas conferências introdutórias à psicanálise (1933), quando diz que “a teoria das pulsões é nossa mitologia” e que as pulsões “são entidades míticas, magníficas em sua indeterminação”. Freud começa a cercar essa indeterminação desde os primórdios de sua elaboração e, já em 1905, nos Três ensaios sobre a sexualidade, indica a íntima relação das pulsões com a sexualidade. Esse princípio energético, que ocupa a zona fronteiriça entre o somático e o psíquico, é inicialmente pensado em termos de uma primeira dualidade: as pulsões sexuais, de preservação da espécie; e as pulsões do ego, ou de autopreservação. Mais tarde, em seu ensaio “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914), essa dualidade é diluída por Freud sob o argumento de que o ego toma-se por objeto amoroso, em alguns casos, fazendo com que a pulsão do ego se transforme em pulsão sexual e vice-versa. Tal concepção é objeto de revisões e reelaborações e, em 1920, em Mais-além do princípio de prazer, a dualidade pulsional é retomada, e assim permanece até o final da obra de Freud, sob a ótica de dois princípios basais: o das pulsões sexuais e o das pulsões de destruição. A esses dois princípios Freud vai chamar, respectivamente, de Eros e Tânatos. Remontando ao primeiro Eros, podemos encontrar as principais características que Freud atribuiu à última modalidade de dualismo pulsional. Antes de o olharmos mais de perto, vejamos o segundo Eros. Este, enquanto filho e servidor de Afrodite, partilha da função dela — a de aglutinar a multiplicidade de indivíduos;
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ou melhor, ele visa a unir os fragmentos dispersos, não de indivíduos (não-divididos), mas de seres divisos, castrados, como o fora o pai de Afrodite. As ações do jovem Eros, portanto, pressupõem que haja falta, incompletude, para haver atração, desejo (que, em grego, chama-se também, e não gratuitamente, Eros). Temos essa idéia reiterada no Banquete, de Platão, ao situar a genealogia de Eros como filho de Penia, da Pobreza. O filósofo sublinha uma dimensão do amor que mais tarde, a psicanálise vai ecoar tanto com Freud quanto com Lacan, a dimensão narcísica, na medida em que, na relação amorosa, um busca no outro amado justamente o que lhe falta. O primeiro Eros, por sua vez, mais do que evocar, parece encarnar uma “nostalgia por uma unidade perdida”, na expressão de J.-P. Vernant. Sua autogênese é indicativa desse mo(vi)mento na medida em que nos revela traços que serão mais tarde (c. séc. VI a.C.) explicitados pelo Eros órfico: ele é macho e fêmea ao mesmo tempo, com dois pares de olhos que podem olhar em todas as direções, além de muitas cabeças. Sendo Todo, tal Eros busca voltar à completude do Todo, busca a supressão de toda falta ou penúria, o retorno a um estado de satisfação plena. A esse tipo de movimento Freud caracterizou como retorno ao estado inanimado, como supressão de qualquer nível de tensão ou como estado de Nirvana. E é justamente ele que está na visada da pulsão de morte, de Tânatos (Thánatos, morte em grego), como Freud também vai nomeá-la. A ausência de Tânatos, enquanto divindade, na mitologia grega é mais um indício para o argumento que tenho
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sugerido aqui, de que Eros, em sua duplicidade na tradição mítico-grega, antecipa e recobre o dualismo pulsional que Freud postulará mais tarde. Como Safo de Lesbos sabiamente caracterizou-o, no fragmento 19: “Eros é doceamargo.” Em outras palavras, Eros é duplo, é aquele que engendra e desfaz, é o “tecelão de mitos”, o mythóplokos, que, com sua astúcia, tece redes de sedução, de enganos; como também, em última instância, dá nome a essa outra força primordial que nos leva a buscar Nirvana. Talvez seja por isso que Sófocles, em sua Antígona, o tenha descrito como “Eros invencível na batalha ... Nenhum dos imortais te pode escapar, nem tampouco os mortais, e aquele que te possui é louco”. Na visão trágica de Sófocles, Eros, aquele que ao mesmo tempo repousa “sobre o rosto de uma donzela”, “promove a discórdia entre aqueles do mesmo sangue”. Sobretudo, como imortal, Eros sobrepõese aos próprios imortais, é uma força que nem os não-mortais (os que negam a mortalidade) podem subjugar, aniquilar, matar. Sob a aguda ótica trágica, podemos retomar o dualismo pulsional de Freud não mais em termos de “vida x morte”, mas de vidamorte, e ressoar o Freud de Mais-além do princípio de prazer. Há aí, fundamentalmente, um movimento pulsional por excelência, que busca a repetição de uma experiência primordial de satisfação. Isto é a primazia da pulsão de morte em sua complexidade dialética. Como encena a trágica figura de Antígona, e a psicanálise mais tarde reafirma, a reedição dessa satisfação total está paradoxalmente fadada ao fracasso, uma vez que seu objeto é desde
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sempre perdido. É por isso que, quando falamos em pulsão,

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